Sematron Cult: Brazil, O Filme
Geralmente visto como um dos subgêneros da ficção científica, as distopias marcaram presença na cultura pop ao longo do último século e meio. Mais do que os avisos e especulações sobre um futuro próximo, elas também servem de sátira da sociedade atual, mostrando suas inconsistências e paradoxos para que reflitamos sobre nossos valores e prioridades. Na obra analisada hoje iremos para um desses casos, em um mundo sujo com pessoas antipáticas e cínicas, com um estado autoritário e violento, mas que não tem todo o controle que gostaria. Hoje vamos para o Brazil.
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Não Brasil, Brazil. A sociedade distópica. Quer dizer… a outra.

Produzido e dirigido por Terry Gilliam, integrante do grupo Monty Python, Brazil (1985) é um filme de humor negro, com ironia e sarcársmo típicos da comédia britânica. A originalidade da sociedade apresentada no filme é o grande apego à burocracia, com um longo sistema estatal que serve como elemento alienador da população. Os desmandos e idiossincrasias do estado autoritário ficam escondidos no meio de formulários, carimbos e recibos, a ponto das diferenças sociais, os desaparecidos políticos e as torturas serem ignoradas pelas altas classes, apegada às futilidades do consumismo, enquanto as baixas ou estão muito ocupadas trabalhando para sobreviver ou não veem outro modo de serem ouvidas que não seja pela violência e pelo terrorismo.

Ainda bem que é ficção, não é mesmo?

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Se fosse um cidadão de bem, isso não aconteceria!

No meio do emaranhado sistema de registros, um literal “bug” faz com que um inocente seja confundido com um terrorista e capturado pelo Ministério da Informação, órgão do governo responsável por torturar recuperar informações de cidadãos. O protagonista Sam Lowry, interpretado por Jonathan Pryce, é um burocrata de baixo escalão desse mesmo ministério, já insensível com os problemas sociais devido aos anos de trabalho. Mesmo assim, Sam mantém sonhos com a liberdade e o amor, fantasiando sobre uma realidade em que se vê voando livre por amplos campos verdejantes.

Devido a esse erro no sistema, Sam entra em contato e se apaixona pela caminhoneira Jill Layton, que sem saber está sendo falsamente acusada de relações com terroristas por tentar corrijir a injustiça. O verdadeiro terrorista, Sr. Tuttle, é um engenheiro que trabalhava no Departamento de Serviços Gerais fazendo reparos em equipamentos para a população. Tuttle cometeu o terrível crime de realizar seus serviços de forma autônoma, sem pedir autorizações ou expedir recibos, depois de abandonar o cargo oficial por não gostar de lidar com a papelada.


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Lamento pelo faxineiro.

E como há papelada! Que demanda mais papelada. Recibos de recibos, cópias de segundas e terceiras vias, requisições de carimbos por meio de formulários que só podem ser preenchidos depois de apresentadas as tais cópias da terceira via. Tudo feito para demonstrar que o governo não é realmente ineficiente, mas sim extremamente eficiente em ser ineficiente.

A situação progressivamente piora conforme Sam adentra a barriga da besta e sobe nos cargos governamentais. Mas ao passo em que se torna displicente com suas tarefas, lentamente recupera parte de sua empatia. Com o Ministério não podendo admitir que capturou o homem errado, Sam embarca em uma jornada para ter seu amor correspondido e provar a inocência de Jill, mesmo que para isso tenha de quebrar os protocolos do governo.

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As temáticas exageradas não se apresentam apenas nas falas e situações vividas pelas personagens, mas também nos figurinos e cenários, com referências ao retrofuturismo e semelhanças com a estética steampunk. Descaradamente baseada em 1984, Gilliam optou por um visual próximo ao pós-guerra, com apetrechos e vestimentas que surgem como uma extrapolação da época, o que contribui para o teor de um mundo velho e decadente. Os prédios altos e ambientes internos apertados causam um sentimento de claustrofobia, que se soma a poluição e a equipamentos claramente ultrapassados e remendados, de qualidade baixa e que quebram constantemente. Demonstrando um descaso com tudo que não é imediatamente importante, é deixado de lado qualquer senso de beleza e praticidade, bem como representado pelos canos, dutos pneumáticos e fios elétricos que perpassam desordenadamente por todo lugar.

Os habitantes desse mundo não são menos característicos. Das mulheres obcecadas com cirurgia plástica ao pai de família trabalhando como torturador, passando pelos técnicos que fazem questão de deixar fios espalhados pela casa toda (sem terminar os reparos), nos indagamos o quão essas ideias que parecem esquetes de humor se diferem da realidade.

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Tecnologia de última geração

Em contraponto aos escritórios e máquinas de escrever, temos a temática dos sonhos como escape da realidade. Em diversos momentos a narrativa do filme se quebra, dando espaço para as aventuras oníricas de Sam, que como já dito cria um mundo fantástico em que pode se ver livre. E é curiosamente nesse ponto que entra o Brasil.

Para quem ouve desavisadamente, principalmente aqui das terras tupiniquins, pode achar estranho um filme distópico inglês com o nome “Brazil”. Considerando sinopse e época, uma crítica à ditadura militar brasileira, que estava em seus últimos anos, já foi levantada como possível inspiração. Mas por melhor que se encaixe, o motivo é exatamente o contrário.

Segundo o próprio Gilliam, a inspiração para o nome do filme veio de uma cena que presenciou, quando em uma cidade industrial inglesa, em uma praia coberta de fuligem, viu um homem observar o pôr do sol enquanto um rádio ao seu lado tocava “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. A música, que serve de base para a trilha sonora do filme, transportou o diretor para essa realidade paradisíaca, grandemente influenciada pela imagem do Brasil no exterior, como um local bucólico de belezas naturais, terra da música e da sensualidade do samba e do carnaval. Imagem essa propagada pelos governos brasileiros a partir da década de 30, incluindo as ditaduras do Estado Novo e do Regime Militar, o que ironicamente fecha um ciclo ao se encaixarem, mesmo que parcialmente, na descrição distópica de Gilliam.

Mesmo pouco conhecido, Brazil foi um sucesso de crítica. Seus símbolos e suas metáforas ainda são discutidas e conseguem sintetizar como poucos o sentimento de prisão pelo sistema, ainda mais ao subverter a clássica forma do cidadão comum que se torna um herói lutando contra o estado opressor e sem rosto. Com temas que se mantém atuais, o filme se tornou um referencial, ainda levantando discussões e reflexões nessa nossa sociedade cada vez mais distópica.

Fontes: